Há
tempos, fui abordado para escrever uma rubrica sobre um assunto polémico e
delicado: o Fado.
Como
amante do fado que sou, é evidente que me senti lisonjeado com tal distinção,
embora sabendo que existem tantos amantes desta
canção que apresentariam um currículo mais aliciante e favorável à escolha.
Aceitei
mesmo assim o desafio, até porque ele veio ao encontro a um horizonte cultural
que sempre pretendi dilatar, ponderando os prós e os contras, aventurei-me a
dar uma opinião embora sumária sobre este assunto.
Ao
iniciar esta rubrica, um problema de ordem cronológica deparou-se-me, escrever
sobre fado como música e canto, ou fazer primeiro, uma abordagem à guitarra
portuguesa.
A razão
é simples, este instrumento de origem cortesã não consta ter sido mobilizada
pelo Fado quando do seu aparecimento, embora não se possa dissociar o Fado da
guitarra portuguesa. É um casamento perfeito.
Sem
qualquer pretensão de investigador, começo por situar o primeiro método de
estudo para guitarra, de António da Silva Leite, mestre de capela da cidade do
Porto, onde nasceu a 23 de maio de 1759 onde veio a falecer a 19 de janeiro de
1833 com 74 anos. Silva Leite consagrou-se como músico erudito de grande sensibilidade.
Aos 28
anos abandonou os estudos eclesiásticos depois de ter recebido as ordens
menores, talvez não tivesse sido alheio a esta vocação uma ilustre senhora de
Taverede D. Antónia Magdalena de Quadros e Sousa, digníssima dama a quem o
mestre de capela dedicou o estudo de guitarra em que se expõe o meio mais fácil
para aprender a tocar este instrumento.
Este
método foi publicado no dia 15 de março de 1796 e pode afirmar-se que fica uma
data simbólica da nacionalidade de um instrumento inglês chamado cistre, ao
qual Silva Leite chamou guitarra portuguesa. O preço de venda do opúsculo era
1.200 réis, e divide-se em duas partes: a primeira é sobre as técnicas utilizadas
e as afinações, e a segunda sobre as melodias que podiam ser tocadas por este
instrumento palaciano como minuettos, marchas, allegros, contradanças e os
acordes mais simples para iniciados.
Em 1814
editou um “Tanto Ergo” a quatro vozes, que ainda hoje se pode ouvir em
solenidades religiosas.
A
guitarra de Silva Leite, segundo o meu amigo, o investigador e musicólogo José
Lúcio Ribeiro de Almeida, um dos sócios fundadores
da Associação Portuguesa dos Amigos do Fado, tinha
dez
cordas distribuídas por seis ordens, onde as quatro primeiras eram
duplas e a quinta e sexta simples, em bordão.
A
afinação que Silva Leite usava na sua guitarra era a seguinte: Sol – Mi
– Dó – Sol – Mi - Dó, afinação dada das cordas mais finas para as mais grossas.
O sistema de afinação era mecânico em “leque” por chave de relógio e a escala
do instrumento só tinha doze trastes (“trastes ou pontos”).
Atualmente,
a guitarra de Lisboa tem doze cordas emparelhadas em seis ordens duplas e afina
da aguda para o grave: Si – Lá – Mi – Si – Lá – Ré -.
A
Guitarra de Coimbra, por seu turno, afina um tom a baixo da de Lisboa: Lá – Sol
– Ré – Lá – Sol - Dó -, o que lhe confere uma sonoridade mais toeira, mais “grave”, tendo
uma técnica de tocar muito diferente da de Lisboa.
Foi
longo o percurso das modificações efectuadas pelos guitarreiros desde a
guitarra de Silva Leite ao actual, e tal como um fado
vivido que nos alcança e não o desvendamos completamente.
Em
qualquer país civilizado, onde a cultura é sentida pelos seus governantes,
seria motivo de homenagem ao homem que conferiu a
certidão de nascimento a um instrumento tão querido ao povo lusíada,
que sempre cultivou a arte de a dedilhar e ouvir. Este instrumento
tão régio, como popular, em que povo escreveu toda a sua
história em música e poemas narrativos das classes sociais que
necessitam ser ouvidas.
Em 1922
surgiu o quinzenário de literatura e poesia porta-voz do fado
Guitarra de Portugal, propriedade do poeta João Linhares Barbosa,
que elegeu a guitarra portuguesa como expressão
conseguida
da nossa sensibilidade nacional.
Estaremos
a eternizar uma mensagem histórica. Uma identidade a preservar.
Luis de Castro
Presidente
do Concelho Fiscal da Associação Portuguesa dos
Amigos do
Fado